Em 18 de Março de 2016, nas proximidades dum casino em Macau, D foi convencido por A a contrair empréstimo para jogar. D concordou, e, então, A convocou B para falar com D sobre esse assunto. A seguir, um indivíduo do sexo masculino, desconhecido, disse que poderia conceder a D um empréstimo no valor de HKD$100.000,00, mas D teria de lhe entregar o seu Passaporte da RPC como garantia, sendo este um dos termos do empréstimo. Tendo aceitado este termo do empréstimo, D entregou o seu Passaporte da RPC e assinou a respectiva declaração de dívida, por seu turno, o indivíduo em apreço apreendeu e guardou o documento de identificação e a declaração de dívida supramencionados. No mesmo dia, por volta das 17h00, depois de ter perdido todo o dinheiro emprestado, D foi levado por B e C a um quarto duma loja de massagem nos pés para ser vigiado. Naquele momento, B devolveu a D o Passaporte da RPC, mas apreendeu-lhe o telemóvel. D chegou a pedir para ir embora, porém, tal pedido foi recusado por B e C.
Assim sendo, A foi condenado pelo Tribunal Judicial de Base, pela prática de um crime de usura para jogo, p. e p. pelo art.º 13.º, n.º 1 da Lei n.º 8/96/M, em conjugação com o art.º 219.º, n.º 1 do Código Penal (por convolação dum crime de exigência ou aceitação de documentos, p. e p. pelo art.º 14.º, conjugado com o art.º 13.º, n.º 1 da Lei n.º 8/96/M), na pena de 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos, bem como lhe foi interditada a entrada nos casinos da RAEM, por um período de 3 anos; B, pela prática do mesmo crime (igualmente por convolação do crime de exigência ou aceitação de documentos) e dum crime de sequestro, p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1 do Código Penal, foi condenado, em cúmulo jurídico, na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos, bem como lhe foi interditada a entrada nos casinos da RAEM, por um período de 3 anos.
Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal de Segunda Instância, alegando que se verificava o vício de erro na aplicação da lei, previsto no art.º 400.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, na decisão do Tribunal a quo que procedeu à convolação de crimes por entender que a devolução do Passaporte a D por B era um acto compatível com o conceito jurídico da desistência.
De acordo com o Tribunal Colectivo do TSI, existe consumação do crime de exigência ou aceitação de documentos quando, com o objectivo de alcançar benefício, facultar a uma pessoa dinheiro ou qualquer outro meio para jogar, bem como exigir ou aceitar documento de identificação legal dos respectivos devedores, como garantia da dívida. Por outras palavras, consuma-se o crime em apreço se o agente, ao conceder empréstimo a uma pessoa para jogar, exigir documento de identificação do jogador, como garantia da dívida, independentemente de o documento ter sido usado ou não para coagir o jogador a pagar a dívida e de o agente ter devolvido ou não o documento ao jogador, uma vez que já se verificou o resultado típico, ou seja, o jogador perdeu o direito de disposição de seu documento. A devolução do documento de identificação a D por B não implica que B tenha desistido, voluntariamente, de usar tal documento para recuperar a dívida, mas, sim, que adoptou outra solução alternativa para o mesmo fim, por conseguinte, essa conduta não revela que B voluntariamente tenha impedido a verificação do resultado.
Voltamos ao presente caso, A e B concederam empréstimo a D para jogar e aceitaram o Passaporte da RPC entregue por D, como garantia da dívida, pelo que se consumou o crime de exigência ou aceitação de documentos. Posteriormente, a devolução do Passaporte a D efectuada por B durante o processo do sequestro não só não constituiu o caso de “voluntariamente desistir de prosseguir na execução do crime” ou “impedir a sua consumação”, mas também não corresponde à situação de “não obstante a consumação, impedir a verificação do resultado não compreendido no tipo de crime”.
Pelo exposto, acordaram no TSI em conceder provimento ao recurso interposto pelo MP, procedendo à alteração parcial da condenação de A e B na decisão a quo: A passou a ser condenado, pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de exigência ou aceitação de documentos, p. e p. pelo art.º 14.º da Lei n.º 8/96/M, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos, bem como lhe foi interditada a entrada nos casinos da RAEM, por um período de 3 anos; B passou a ser condenado, pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de exigência ou aceitação de documentos, p. e p. pelo art.º 14.º da Lei n.º 8/96/M, na pena de 2 anos de prisão; manteve-se a condenação de B pela prática dum crime de sequestro; e, em cúmulo jurídico das penas aplicadas aos dois crimes, B foi condenado na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos, bem como lhe foi interditada a entrada nos casinos da RAEM, por um período de 3 anos.
Cfr. Acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância no processo n.º 1205/2019.