A (arguido) e B (ofendida) contraíram matrimónio em 1998 e geraram uma filha e um filho. Desde 2004, A, por ter uma relação extraconjugal com outra pessoa, começou a adoptar uma atitude desagradável perante B e, a partir daí, A entrou frequentemente em conflito com B devido aos problemas emocionais e financeiros da família. Entre 2004 e 2016, A agrediu, por duas vezes, B e, por duas vezes, lhe dirigiu actos e palavras de ameaça; além disso, ralhava-lhe frequentemente, usando uma linguagem abusiva e grosseira, bem como praticou constantemente contra ela agressões, como puxões e empurrões. A par disso, A interferiu e controlou todos os assuntos, relativos ao trabalho e à vida quotidiana de B. B foi diagnosticada com reacção emocional na adaptação de pressão e, várias vezes, pediu auxílio ao Instituto de Acção Social, chegando até a ser internada no centro de apoio, devido às ofensas que A lhe fazia.
A foi acusado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo n.º 2 do art.º 18.º, em conjugação com a alínea 2) do n.º 3 do mesmo artigo da Lei n.º 2/2016; contudo, após julgamento, o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base condenou-o, pela prática do crime de ofensa simples à integridade física e do crime de ameaça, em vez do imputado crime de violência doméstica, em cúmulo jurídico, numa pena única de 10 meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos. Tal condenação resultou da falta de apuramento dos seguintes factos: o arguido, de forma frequente, constante e reiterada, infligiu maus tratos à ofendida e praticou agressões físicas contra a mesma; o arguido, de forma frequente, constante e reiterada, dirigiu actos e palavras de ameaça à ofendida e ralhou-lhe, usando uma linguagem abusiva e grosseira; o arguido levou a ofendida a sentir-se que sofria de maus tratos psíquicos e que contra ela praticava agressões e lhe infligia maus tratos físicos perante a sua filha menor de menos de 14 anos de idade. Por conseguinte, não considerou que os aludidos factos fossem suficientes para constituírem os maus tratos mencionados no n.º 1 do art.º 18.º da Lei n.º 2/2016.
Inconformado, o Ministério Público recorreu para o Tribunal de Segunda Instância.
O TSI conheceu do caso, indicando que, face tanto à reiteração dos actos como à gravidade dum único acto, os maus tratos só existem quando na relação familiar se verifiquem coerção e controlo imperativos sobre os cônjuges ou membros familiares, ou seja, o agente, pelo seu acto ofensivo, controla a vida e o ambiente do ofendido. O legislador pretende punir essa violência que ofende a integridade física e a dignidade das pessoas.
Conforme o TSI, do estado de convivência entre o arguido e a ofendida se vislumbra que as ofensas físicas e psíquicas feitas pelo arguido à ofendida constituíam coerção e controlo, causando à ofendida o receio do arguido, pelo que, em suma, os actos ofensivos praticados pelo arguido constituíam violência doméstica.
Ora, a sentença a quo cometeu realmente o erro na aplicação da lei, uma vez que todos os elementos constitutivos de crime, consagrados no n.º 1 do art.º 18.º da Lei n.º 2/2016, foram procedentes; assim sendo, seria necessária a aplicação do sobredito preceituado como disposição de incriminação.
Em face do exposto, acordaram no Tribunal Colectivo em conceder provimento ao recurso interposto pelo M.P., passando A a ser condenado, pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo n.º 1 do art.º 18.º da Lei n.º 2/2016, na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos com regime de prova.
Cfr. Acórdão, proferido pelo Tribunal de Segunda Instância no processo n.º 365/2019.