Em 3 de Dezembro de 2017, quando A passava por ruas próximas de determinado hotel, um indivíduo meteu conversa com ele, dizendo que lhe podia conceder empréstimo para jogo. A revelou que pretendia contrair empréstimo, pelo que foi encontrar-se com B e C para negociarem os termos do empréstimo. A, B e C chegaram a um acordo, isto é, B e C concederiam um empréstimo de HKD$30.000,00 a A para jogo, sob condição de A entregar, à cabeça, um montante de HKD$3.000,00 do capital, como juros, e de pagar 15% do valor das apostas, como juros, sempre que vencesse um jogo. Em seguida, B e C entregaram a A as fichas no valor de HKD$27.000,00 para jogo. A perdeu todo o dinheiro emprestado. Durante o jogo, a A foi cobrado um montante total de cerca de HKD$20.000,00 de fichas, como juros. A perdeu nos jogos e não foi capaz de pagar imediatamente a dívida, por isso, B e C levaram A até a um quarto dum determinado hotel para descansar, aguardando que ele liquidasse a dívida. No aludido quarto, A entregou o seu passaporte da RPC a C, conforme exigido por este, para servir de garantia do empréstimo contraído, até ao integral pagamento da dívida. Depois, A, pelas aplicações de telemóvel, comunicou a sua situação a um amigo. Os agentes policiais receberam a queixa e dirigiram-se ao quarto do hotel em causa para investigação, descortinando enfim o presente caso. Ao longo da investigação, quando A disse aos agentes que o seu passaporte não estava na sua posse, C revelou logo a A que o passaporte dele estava por baixo da almofada, assim, A foi imediatamente buscá-lo. Após o julgamento, o Tribunal Judicial de Base condenou B e C, pela prática de um crime de usura para jogo, p. e p. pelo art.º 13.º, n.º 1 da Lei n.º 8/96/M, em conjugação com o art.º 219.º, n.º 1 do Código Penal de Macau, na pena de 9 meses de prisão, cada um, suspensa na sua execução por 2 anos, bem como lhes foi interditada a entrada nos casinos da RAEM, por um período de 3 anos. Mais, o TJB absolveu C dum crime de retenção indevida de documento, p. e p. pelo art.º 6.º da Lei n.º 6/97/M (Lei da Criminalidade Organizada), por se verificar a “desistência”. Inconformado com a decisão de absolvição, o Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal de Segunda Instância.
O Tribunal Colectivo do TSI conheceu do caso.
De acordo com o Tribunal Colectivo, o crime previsto no art.º 6.º da Lei n.º 6/97/M (Lei da Criminalidade Organizada) consiste em crime de mera actividade, cujo acto do tipo de crime é a retenção de documento de identificação alheio pelo autor e o resultado criminoso é a privação do direito de propriedade e disposição de documento de identificação usufruído pelo portador de documento, ou, consuma-se o crime e verifica-se ofensa ao benefício legal do portador de documento se, com intenção de obter o benefício indevido ou atingir o objectivo do crime em causa, o autor retiver documento de identificação alheio. Não se considera desistência a devolução subsequente de documento pelo autor, uma vez que o bem jurídico a ser protegido (direito de propriedade do portador de documento) já foi destruído pelo autor. Ademais, a “voluntariedade” da desistência exigida pelo art.º 23.º, n.º 1 do Código Penal deve ser considerada como uma vontade própria do autor e não uma vontade formada por motivo externo ou pressão externa. Todas as desistências significativas no direito penal têm de ser efectuadas voluntariamente pelo autor. Não se considera desistência voluntária quando o autor decide efectuar a desistência no momento em que toma conhecimento de que os agentes da autoridade estão a proceder à investigação do crime cometido, ou na altura em que é detido e interrogado. In casu, verifica-se a consumação do crime de retenção indevida de documento, visto que C praticou todos os actos que preenchem os elementos constitutivos fundamentais do referido crime. Na sequência da consumação do crime em questão, não é indispensável falar sobre as situações de “desistência efectiva” e “impedimento da consumação do crime” relacionadas à ampla concepção da desistência; a par disso, C revelou o lugar onde foi escondido o documento de A, acto esse praticado no momento em que os agentes policiais verificavam os dados de identificação das pessoas presentes no local em causa, sendo esta uma desistência por pressão externa e não voluntária, tampouco uma desistência proveniente da seguinte situação: “não obstante a consumação, impedir a verificação do resultado não compreendido no tipo de crime”.
Nos termos expostos, acordaram no Tribunal Colectivo em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, passando a condenar C, pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de retenção indevida de documento, p. e p. pelo art.º 6.º da Lei n.º 6/97/M (Lei da Criminalidade Organizada), na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, mantendo-se a condenação de C pela prática dum crime de usura para jogo, e, em cúmulo jurídico das penas aplicadas aos dois crimes, foi C condenado na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos, bem como lhe foi interditada a entrada nos casinos da RAEM, por um período de 3 anos.
Cfr. Acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância no processo n.º 1169/2019.