Em Janeiro de 2016, A conheceu B, sabendo que B concedia empréstimos a terceiros para ganhar juros. Por precisar urgentemente de dinheiro, A pediu a B informações sobre os termos do empréstimo. B disse que, por cada empréstimo no valor de MOP100.000,00, retirava à cabeça um montante de MOP5.000,00 do capital, como juros, bem como cobrava mensalmente um montante de MOP5.000,00, como juros, e aceitava cheque emitido pelo devedor como garantia. A aceitou os aludidos termos e contraiu um empréstimo no valor de MOP400.000,00. Ambos acordaram que A quitaria a dívida no período de um ano e meio, no valor total de MOP630.000,00 (capital e juros). B entregou a A a quantia de MOP380.000,00, depois de ter retirado o montante de MOP20.000,00 como juros. Em Fevereiro e Março do mesmo ano, A pagou parte da dívida a B, posteriormente, por problemas nas movimentações financeiras, A deixou de efectuar o pagamento da dívida e, em consequência, o caso foi descortinado. Na altura, a taxa anual de juros legais estipulada em mútuo era de 9,75%, pelo que B cobrou juros superiores ao triplo dos juros legais. Por força do art.º 1073.º, n.º 1 do Código Civil, é havido como usurário o acordo de empréstimo em apreço. O Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base condenou B, pela prática dum crime de usura, p. e p. pelo art.º 219.º, n.ºs 1 e 3, al. b) do Código Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos, sob condição de pagar, no prazo de 2 meses contados a partir da data do trânsito em julgado da decisão, uma contribuição no valor de MOP10.000,00 a favor da RAEM, destinada a reparar o dano do crime cometido. Inconformado, B interpôs recurso para o Tribunal de Segunda Instância, por entender que a decisão em causa enfermava dos vícios de “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada” e “erro notório na apreciação da prova”.
O Tribunal Colectivo do TSI conheceu do caso.
No que concerne à questão de “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, segundo o Tribunal Colectivo, na audiência de julgamento, o TJB procedeu à investigação integral dos assuntos relativos ao objecto da causa, bem como formou a convicção, não se verificando qualquer omissão, insuficiência ou falta na matéria de facto provada. Quanto à questão de “erro notório na apreciação da prova”, de acordo com o Tribunal Colectivo, B considerou que o Tribunal violou o princípio “in dubio pro reo”, já que as declarações prestadas por ele próprio e por A eram claras, estavam conforme o senso comum e eram compatíveis com as informações constantes dos autos, embora fossem distintos os seus conteúdos, e que o Tribunal apenas adoptou as declarações prestadas por uma parte e não denegou integralmente as declarações prestadas por outra parte. Deste modo, no entendimento do Tribunal Colectivo, não se trata da lógica de “ou isto ou aquilo” na relação entre as declarações prestadas por A e B, a acrescentar, com base nas declarações prestadas por A e B, nos depoimentos das demais testemunhas e nas provas documentais constantes dos autos, o Tribunal deu como provados os factos compatíveis com o conteúdo das declarações prestadas por uma parte, não se verificando a ponderação e adopção parcial das declarações nem violação do princípio “in dubio pro reo”. Deste modo, na opinião do Tribunal Colectivo, o recurso interposto por B não merece provimento.
Todavia, apontou o Tribunal Colectivo que o n.º 1 do art.º 219.º do Código Penal preceitua que um dos elementos constitutivos do crime de usura consiste em que o devedor se encontra em “situação de necessidade”. Portanto, o Tribunal Colectivo concordou com o entendimento do Ministério Público, a expressão – “precisava urgentemente de dinheiro” – encontrada nos factos provados da sentença é insuficiente e demasiado simples para demonstrar a existência da “situação de necessidade” exigida pelo n.º 1 do art.º 219.º do Código Penal. O Tribunal Colectivo indicou que embora o motivo do empréstimo solicitado por A tenha sido revelado na sentença recorrida, tal facto não foi descrito na acusação nem se rectificou a acusação, ao abrigo do disposto no art.º 339.º do Código de Processo Penal, no sentido de integrar o facto em questão no objecto da acção, pelo que, em virtude da insuficiência para a decisão dos factos constitutivos de crime, se verifica o vício na aplicação da lei.
Em face do exposto, acordaram no Tribunal Colectivo em negar provimento ao recurso interposto por B, porém, com base nos demais fundamentos distintos dos do presente recurso, foram julgadas procedentes as pretensões formuladas por B, passando a absolvê-lo da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de usura que lhe foi imputado, p. e p. pelo art.º 219.º, n.º 1 do Código Penal de Macau.
Cfr. Acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância no processo n.º 457/2019.