Em 2012, por Despacho do Chefe do Executivo, foi aprovada a actualização do preço unitário da taxa de serviço solicitada pelas três sociedades exploradoras de transportes colectivos de passageiros (Transmac – Transportes Urbanos de Macau S.A.R.L., TCM – Sociedade de Transportes Colectivos de Macau, S.A. e Reolian – Sociedade de Transportes Públicos Reolian, S.A.), porém, tal decisão provocou grande reacção da sociedade. Assim sendo, o Chefe do Executivo deu indicação verbal ao Secretário para os Transportes e Obras Públicas, exigindo a revisão do procedimento relativo ao ajustamento das tarifas. Posteriormente, o Secretário para os Transportes e Obras Públicas deu ordem ao Director dos Serviços para os Assuntos de Tráfego para insistir na concretização do plano de melhoramento dos serviços das sociedades exploradoras de transportes colectivos de passageiros, bem como no lançamento do sistema de avaliação da qualidade de serviços, e que se suspendesse o procedimento do ajustamento das tarifas, até à apresentação do referido plano de melhoramento dos serviços pelas referidas três sociedades. Em 10 de Abril de 2013, tendo-se em conta que as medidas de melhoramento adoptadas por Transmac e TCM deram os resultados esperados e satisfizeram as exigências impostas pelo Governo, pelos Despachos do Chefe do Executivo n.ºs 85/2013 e 86/2013, foi autorizado o aumento das despesas da Transmac e da TCM, relativas à taxa de serviço para a prestação do serviço público de transportes colectivos rodoviários de passageiros de Macau, segundo o preço unitário da taxa de serviço aprovado; e, por seu turno, as tarifas da Reolian não foram, enfim, ajustadas, uma vez que existiam ainda vários casos punitivos associados à aludida sociedade que se encontravam em fase de acompanhamento, bem como se registava ainda um grande défice no nível dos serviços prestados pela mesma.
Em seguida, Reolian (ora Autora, representada pelo seu administrador da falência) intentou, no Tribunal Administrativo, uma acção sobre contrato administrativo contra a RAEM, o Chefe do Executivo e o Director dos Serviços para os Assuntos de Tráfego, pedindo que os Réus fossem condenados no pagamento, a favor da Autora, do valor da diferença entre o preço global calculado com base nos preços unitários inicialmente constantes do “Contrato do Serviço Público de Transportes Colectivos Rodoviários de Passageiros de Macau” e o preço global calculado com base nos preços unitários definidos pelo Despacho, de 12 de Junho de 2012, do Chefe do Executivo, referente ao período compreendido entre 12 de Junho de 2012 e 31 de Maio de 2013, no valor total de MOP39.960.050,75; e no reconhecimento do direito da Autora de auferir as tarifas dos serviços de transportes colectivos rodoviários de passageiros prestados, aplicáveis a partir do dia 12 de Junho de 2012, por força do mesmo Despacho do Chefe do Executivo. Foi deferida a intervenção do Banco da China, S.A. (ora credor da Autora) como Assistente da Autora.
Findo o julgamento, o TA absolveu a Autora dos pedidos reconvencionais deduzidos pela RAEM, e julgou procedente a excepção peremptória da ilegitimidade da Autora, absolvendo os Réus dos pedidos deduzidos pela Autora. Inconformados, a Autora e o Assistente interpuseram recurso jurisdicional para o Tribunal de Segunda Instância contra a sentença em apreço.
Após o conhecimento do caso, o Tribunal Colectivo do TSI revogou a parte da sentença do TA que julgou procedente a excepção da ilegitimidade da Autora, passando a julgar improcedente a dita excepção e decretando a baixa dos autos ao TA para o normal prosseguimento da sua tramitação processual até decisão final.
Inconformada, a RAEM (representada pelo Ministério Público) recorreu do decidido para o Tribunal de Última Instância.
O Tribunal Colectivo do TUI conheceu do caso, apontando, de antemão, que à RAEM, como contraente público, não cabe o poder exorbitante de suspender ou alterar o preço contratualmente fixado, ou fixado em sede de revisão contratualmente prevista, pois que não existe esse “poder” ao abrigo do art.º 167.º do Código do Procedimento Administrativo, nem ao abrigo do próprio contrato ou das demais leis especiais, não se podendo confundir isto com a “modificação unilateral do conteúdo das prestações” prevista no art.º 167.º do Código do Procedimento Administrativo. Os factos do presente caso envolvem serviços públicos, a par disso, um contrato de prestação de serviços públicos é distinto dum contrato de concessão de serviços públicos, no primeiro caso, mantém-se na Administração a responsabilidade pela gestão do serviço público, enquanto, no segundo caso, a Administração transfere para o concessionário a referida responsabilidade, pelo que, no entendimento do Tribunal Colectivo, o contrato celebrado entre a Recorrida e a RAEM é um “contrato de prestação de serviços”, devendo ser vinculado pelo regime consagrado no Decreto-Lei n.º 63/85/M. Nesta conformidade, face à situação em questão, à RAEM não era possível a prática de um “acto administrativo (unilateral)”, conformador da relação jurídico-administrativa que com a Recorrida mantinha, visto até que o art.º 65.º, n.º 1 do referido Decreto-Lei determina que “As decisões ou deliberações proferidas pelo adjudicante após a celebração de contrato reduzido a escrito, sobre matéria deste, não são susceptíveis de recurso contencioso”. Portanto, aqui trata-se duma mera “declaração negocial” e não dum “acto administrativo de suspensão da actualização dos preços unitários”.
De acordo com o Tribunal Colectivo, em 26 de Julho de 2012 teve lugar uma reunião onde participaram os representantes das três sociedades exploradoras de transportes colectivos de passageiros na qual chegaram a um acordo de suspensão da actualização dos preços até à conclusão da revisão do processo de ajustamento de tarifas, com o qual se pretendeu sujeitar a actualização de preços à condição de uma melhoria dos serviços oferecidos ao público, o que foi igualmente sustentado pelo representante legal da Recorrida. Contudo, a Recorrida pretendeu depois fazer “tábua rasa” e descaso absoluto do acordado, o que correspondeu, manifestamente, a uma situação de venire contra factum proprium. Na verdade, depois da Recorrida não ter conseguido satisfazer as exigências de melhoria do nível de serviços que lhe foram impostas pela RAEM é que propôs uma acção no TA, reclamando o cumprimento, pelo Governo, da actualização dos preços unitários antes acordada. Nos termos do estatuído no art.º 326.º do Código Civil, o titular deve obedecer ao princípio da boa-fé no exercício de um direito, além disso, o contraente também é protegido pelo princípio da confiança. Ora, por meio extranegocial, a Recorrida pretendeu restaurar a sua posição jurídica, agindo em claro e manifesto “abuso de direito”.
No que concerne ao pressuposto de falta de legitimidade, no caso vertente não houve uma “decisão” (ou um típico “acto administrativo”), mas antes um acordo entre as partes sobre determinada matéria, pelo que o Tribunal Colectivo considerou que na situação dos autos houve “falta de interesse em agir” por parte da Recorrida, cujo efeito finalmente produzido foi a absolvição dos pedidos deduzidos no TA pela ilegitimidade da Recorrida.
Em face do que se deixou expendido, em conferência, acordaram conceder provimento ao recurso, revogando-se o Acórdão recorrido.
Cfr. Acórdão proferido pelo Tribunal de Última Instância no processo n.º 127/2021.