Saltar da navegação

As doações de imóveis ao filho para escapar à dívida são negócios simulados declarados nulos


No dia 6 de Abril de 2017, a Companhia A, a Companhia B, C e sua esposa D celebraram um acordo denominado “Carta de Confirmação de Saldo em Dívida”, no qual, todas as partes confirmavam que a Companhia B havia tomado emprestado da Companhia A, no dia 27 de Agosto de 2014, a quantia de RMB5.000.000,00, mas não havia cumprido o compromisso de pagar à Companhia A a dívida no prazo de 7 dias, pelo que, desde a data do empréstimo eram devidos juros compostos ao mês à taxa de 10% ao ano até ao pagamento integral do empréstimo; e, à data do acordo, a Companhia B estava em dívida na quantia de RMB5.000.000,00 de capital emprestado e na quantia de RMB2.172.522,92 de juros contabilizados até ao dia 31 de Março de 2017. No referido acordo, a Companhia B comprometia-se a pagar à Companhia A a totalidade da dívida, acrescida dos juros até à data do seu integral pagamento nos termos acordados. Por sua vez, C e D assumiram a responsabilidade solidária de garantia do pagamento da mesma dívida, pelo prazo de 2 anos a contar do termo do prazo para pagamento da dívida pela Companhia B. Em 2 e 22 de Julho de 2015, por escrituras públicas, C e D procederam, respectivamente, à doação de duas fracções autónomas situadas em Macau ao seu filho menor E. Em seguida, a Companhia A propôs no Tribunal Judicial de Base uma acção declarativa contra C, D e E, pedindo que fossem declaradas nulas as aludidas doações por serem negócios totalmente simulados, e, a título subsidiário, pedindo que fossem declarados ineficazes os negócios em causa, na medida necessária à satisfação integral do crédito da Companhia A. Oportunamente, por sentença do Mm.º Juiz Presidente do Colectivo do TJB, conhecendo-se tão só do “pedido subsidiário”, julgou-se improcedente a acção com a consequente absolvição de C, D e E.

Inconformada, a Companhia A recorreu do decidido para o Tribunal de Segunda Instância. Após o julgamento, de acordo com o TSI, pese embora tenha provado que C e D celebraram escrituras públicas de doação de duas fracções autónomas a E, constata-se, no entanto, que a verdadeira intenção de C e D não foi transmitir-lhe gratuitamente os bens imóveis em causa, antes pretenderam criar uma mera aparência de que aquelas fracções já deixaram de integrar o património conjugal, de modo a prejudicar a Companhia A e impedir a satisfação do seu crédito, isto traduz-se numa divergência entre a vontade real e a vontade declarada, tendo C, D e E agido em conluio e com a intenção de enganar terceiros, especialmente a Companhia A. Nestes termos, no entendimento do Tribunal Colectivo do TSI, a conduta de C, D e E integrou a figura de simulação absoluta prevista no n.º 2 do art.º 232.º do Código Civil de Macau, pelo que se julgou provido o recurso nesta parte, declarando-se nulos os negócios de doação feitos por C e D ao E do direito de concessão por arrendamento, incluindo a propriedade da construção, das aludidas fracções autónomas.

Inconformados, C, D e E recorreram do decidido para o Tribunal de Última Instância, tendo a Companhia A também interposto recurso subordinado.

O Tribunal Colectivo do TUI conheceu do caso. Face à impugnação da decisão sobre a matéria de facto pelo TSI proferida, conforme o Tribunal Colectivo, as doações em questão terem sido efectuadas por escrituras públicas, em nada obsta à decisão pelo TSI proferida quanto à intenção dos doadores, já que a intervenção do notário nos ditos negócios absolutamente nada assegura quanto a tal aspecto psicológico ou subjectivo, limitando-se a confirmar o que lhe foi declarado. Com efeito, a força probatória plena de um documento autêntico não alcança a coincidência entre a vontade do declarante e a declaração pelo mesmo produzida (cfr. art.º 365.º e 366.º do Código Civil de Macau). A escritura apenas prova que as declarações dos contraentes, prestadas perante o notário, foram emitidas. A força probatória material da escritura pública não abarca a sinceridade, a veracidade e a validade das declarações emitidas pelas partes. Ademais, em face da restante matéria de facto, natural e evidente é a conclusão que as doações em questão não constituíram uma intenção da liberalidade, outro tendo sido o verdadeiro objectivo que com as mesmas se quis alcançar, e, daí, no entendimento do Tribunal Colectivo, a correcta consideração e decisão quanto à dada como verificada simulação, com a consequente nulidade dos negócios jurídicos celebrados, mantendo-se a decisão recorrida.

Nos termos de todo o expendido, acordaram no Tribunal Colectivo em negar provimento ao recurso principal interposto por C, D e E, prejudicado ficando o conhecimento do recurso subordinado da Companhia A.

Cfr. Acórdão proferido pelo Tribunal de Última Instância no processo n.º 54/2022.