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TUI: É necessário provar a existência de má-fé para anular o acto prejudicial do direito de indemnização anterior à constituição do crédito


Em 6 de Dezembro de 1991, a Autora A e a Ré B celebraram um contrato-promessa de compra e venda (adiante designado por contrato X) pelo qual B prometeu vender a A um prédio situado na Estrada Marginal da Ilha Verde. Conforme o acordo entre A e B, a realização da escritura da compra e venda prometida ficou dependente de certos condicionalismos a cargo de B, nomeadamente, a aprovação da área de construção e a desocupação do imóvel pelos inquilinos. Para o efeito, em 15 de Maio de 1993, B celebrou com D o “contrato-promessa complementar” de revisão das cláusulas contidas no contrato X, passando D a ser responsável pelo acompanhamento das formalidades relativas ao requerimento do plano de desenvolvimento junto da então DSSOPT. D pagou a B a quantia de HKD247.589.010,00, com vista ao desenvolvimento conjunto do referido prédio. Porém, D acabou por não cumprir a responsabilidade de apresentação do plano de desenvolvimento junto da DSSOPT. Em 18 de Janeiro de 2007, B e C celebraram um contrato-promessa de compra e venda (adiante designado por contrato Y) pelo qual B prometeu vender a C o prédio em causa pelo valor de HKD188.300.000,00, e no dia 16 de Março de 2007, foi feita a inscrição provisória correspondente a favor de C. Em 23 de Julho de 2007, A intentou acção junto do tribunal, pedindo a condenação de B na restituição do sinal em dobro por incumprimento do contrato X. Durante a marcha do respectivo processo, A e B celebraram a transacção, na qual acordaram em rescindir o contrato X, sob condição de B restituir a quantia de HKD350.589.010,00 e pagar a indemnização de HKD247.028.314,00 no prazo de 10 dias, findo o qual se venceriam juros de mora à taxa anual de 1,2%. Este acordo transaccional foi homologado por sentença de 25 de Fevereiro de 2008, transitada em julgado em 10 de Março de 2008. Com base nesta sentença, e nos termos do art.º 86.º, n.º 1, al. i) do Código do Registo Predial, A efectuou, em 3 de Março de 2008, o registo de hipoteca judicial sobre o imóvel em causa. Em 1 de Novembro de 2012, a Conservatória do Registo Predial, oficiosamente, rectificou o dito registo e inscreveu-o como provisório nos termos da al. c) do n.º 2 do art.º 86.º do CRP, por virtude da incompatibilidade com o registo do contrato Y. B não fez o pagamento a A no supracitado prazo acordado, e ao invés, celebrou com C o contrato de compra e venda do mencionado imóvel por escritura pública de 10 de Janeiro de 2009. E com base nesta escritura, C promoveu a conversão definitiva da inscrição provisória datada de 16 de Março de 2007, pedindo a caducidade da inscrição da hipoteca judicial feita por A.

Perante a supracitada situação, A intentou acção contra B e C, pedindo que fosse declarada a nulidade, por simulação, do contrato Y e do contrato de compra e venda celebrado entre B e C no dia 10 de Janeiro de 2009, bem como a nulidade do registo do contrato Y, efectuado por C. Após o julgamento, o Tribunal Judicial de Base julgou improcedente o pedido de declaração de nulidade por simulação do contrato Y, limitando-se a julgar procedente a impugnação pauliana e declarar a ineficácia do acto de alienação relativo ao contrato Y feita por B e C. Inconformada com o assim decidido, C interpôs recurso para o Tribunal de Segunda Instância, que, por Acórdão de 5 de Março de 2020, concedeu provimento ao recurso, revogou a sentença recorrida, e absolveu B e C do pedido em que tinham sido condenadas. Inconformada, A recorreu para o Tribunal de Última Instância.

O Tribunal Colectivo do TUI conheceu do caso.

Indicou o Tribunal Colectivo que, encontram-se regulados no art.º 596.º do Código Civil o princípio geral da garantia geral das obrigações, no art.º 600.º a declaração de nulidade, nos art.ºs 601.º a 604.º a sub-rogação do credor ao devedor, nos art.ºs 605.º a 614.º a impugnação pauliana, e nos art.ºs 615.º a 618.º o arresto. Os aludidos “meios de conservação da garantia patrimonial” concedem ao credor a possibilidade de exigir judicialmente a realização coerciva do seu crédito, conforme os art.ºs 807.º e segs. do Código Civil. É verdade que merece protecção o direito do devedor que se manifesta na liberdade de gestão e disposição do seu património, no entanto, tal liberdade não pode ser ilimitada, necessário sendo conjugá-la com a legítima expectativa do credor que, no caso de incumprimento da obrigação, existam no património do devedor bens exequíveis suficientes. No caso sub judice, através da interposição de acção declarativa, A deduziu impugnação pauliana e pretendeu impedir a compra e venda do imóvel em causa realizada entre B e C, para proteger o seu crédito. O sucesso da impugnação pauliana depende da verificação da existência de um crédito, de um acto de natureza não pessoal que cause prejuízo à garantia patrimonial do devedor (adiante designado por acto prejudicial), e de actos onerosos de má-fé praticados pelo devedor e pelo terceiro. Em princípio, entre os diversos “meios de conservação da garantia patrimonial”, exige-se que a constituição do crédito seja anterior à prática do acto prejudicial, pois que se posterior, não poderá dizer-se que se diminuiu a garantia patrimonial com que o credor contava no momento da constituição do crédito. No caso concreto, B e C celebraram o contrato-promessa de compra e venda do imóvel em causa em 18 de Janeiro de 2007, e realizaram o contrato prometido pela escritura pública no dia 10 de Janeiro de 2009. No entendimento de A, já fora constituído o seu crédito contra B quando da celebração do contrato-promessa de compra e venda de 6 de Dezembro de 1991 e do contrato-promessa complementar de 15 de Maio de 1993. Porém, o Tribunal Colectivo indicou que, por sentença de 25 de Fevereiro de 2008 (transitada em julgado em 10 de Março de 2008), foi homologada a transacção entre A e B, na qual acordaram em rescindir o contrato X, ficando a cargo de B a restituição do preço acordado no contrato-promessa e o pagamento da indemnização e dos respectivos juros, razão pela qual só neste momento é que se constituiu o crédito de A. Não obstante a escritura de compra e venda ter sido celebrada entre B e C em 10 de Janeiro de 2009, o respectivo direito de aquisição já nasce com o contrato-promessa de compra e venda de 18 de Janeiro de 2007. Por outro lado, após a celebração do contrato-promessa de compra e venda, C efectuou o registo da aquisição a título provisório em 16 de Março de 2007, convertido em definitivo em 1 de Novembro de 2012, que tem a prioridade nos termos do n.º 3 do art.º 6.º do CRP. Ou seja, para efeitos de registo, C é considerada como proprietária do prédio envolvido desde 16 de Março de 2007. A recorrente, com base na sentença homologatória da transacção concluída com B no sentido de rescindir o contrato X, efectuou o registo de hipoteca judicial em 3 de Março de 2008, registo esse que é meramente provisório conforme o art.º 86.º, n.º 2, al. c) do CRP, por ser incompatível com o registo provisório de 16 de Março de 2007, feito por C para aquisição do imóvel em causa. Daí que se mostra de considerar que o crédito de A é posterior ao “acto prejudicial” praticado por B e C, visto que a escritura de compra e venda celebrada entre B e C limitou-se a concretizar um contrato-promessa anterior ao crédito de A, e que tem prioridade o registo provisório efectuado por B e C. Na verdade, no momento da constituição dos créditos de A, já podia esta ter conhecimento, com o respectivo registo provisório, de que B tinha prometido alienar o prédio a C, pelo que não poderia contar com este prédio, previsto no art.º 596.º do Código Civil, como susceptível de penhora enquanto garantia geral das obrigações.

Face ao exposto, acordaram no Tribunal Colectivo em negar provimento ao recurso de A.

Cfr. Acórdão do Tribunal de Última Instância, no Processo n.º 105/2020.