Nos autos de recurso penal n.º 248/2021, um croupier de casino, por se ter aproveitado do seu cargo para, em conluio com os jogadores, reclamar fraudulentamente os prémios de jogo, foi condenado pelo Tribunal Judicial de Base pela prática de um crime de peculato p.p. pelo artigo 340.º, n.º 1 do Código Penal, conjugado com o artigo 336.º, n.º 2, al. c), na pena de 3 anos e 6 meses de prisão. O arguido recorreu para o Tribunal de Segunda Instância, que considerou que nos termos do artigo 7.º, n.º 2 da Lei n.º 16/2001, conjugado com o Despacho do Chefe do Executivo n.º 26/2002, a exploração de jogos de fortuna ou azar em casino foi concedida a três empresas a partir de 8 de Fevereiro de 2002. Portanto, a Venetian Macau, S.A. não é a única sociedade comercial que explora jogos de fortuna ou azar em casino de Macau, não preenchendo o conceito de concessionária previsto no artigo 336.º, n.º 2, al. c) do Código Penal, e de modo igual, os trabalhadores das sociedades de jogos também não se enquadram no conceito de funcionário previsto no artigo 336.º do Código Penal, convolando assim a condenação do arguido para o crime de abuso de confiança, mas mantendo inalterada a medida da pena determinada pelo Tribunal Judicial de Base. Enquanto nos autos de recurso penal n.º 580/2013, um croupier de casino, tendo-se aproveitado do seu cargo para furtar as fichas, foi acusado pelo Ministério Público da prática de um crime de peculato p.p. pelos artigos 340.º, n.º 1 e 336.º, n.º 2, al. c) do Código Penal e condenado pelo Tribunal Judicial de Base pela prática do crime de abuso de confiança p.p. pelo artigo 199.º do Código Penal. Interposto recurso para o Tribunal de Segunda Instância, este entendeu que o recorrente dos presentes autos, como croupier de casino, deve ser equiparado ao funcionário nos termos do artigo 336.º do Código Penal de Macau, assim, os actos de furto por ele praticados no casino integram o crime de peculato p.p. pelos artigos 340.º, n.º 1 e 336.º, n.º 2, al. c) do Código Penal, de que foi acusado pelo Ministério Público, pelo que convolou oficiosamente a qualificação do crime, mas manteve inalterada a medida da pena determinada pelo Tribunal Judicial de Base.
Na tese do Ministério Público, em ambos os processos supra mencionados o Tribunal de Segunda Instância pronunciou-se sobre a questão de saber se as sociedades comerciais que exploram jogos de fortuna ou azar em casino de Macau são “sociedades que explorem actividades em regime de exclusivo” para efeitos do artigo 336.º, n.º 2, al. c) do Código Penal e se os seus trabalhadores são equiparados ao funcionário, tendo proferido acórdãos em sentidos manifestamente opostos, assim, interpôs para o Tribunal de Última Instância recurso extraordinário para fixação de jurisprudência.
O Tribunal de Última Instância procedeu ao julgamento ampliado do recurso.
Indicou o Tribunal Colectivo que, no presente recurso põe-se a questão de saber se as sociedades comerciais que exploram jogos de fortuna ou azar em casino de Macau são sociedades que explorem actividades em regime de exclusivo previstas no artigo 336.º, n.º 2, al. c) do Código Penal e se os trabalhadores dessas sociedades são equiparados ao funcionário à luz da disposição supracitada. Avançou o Tribunal Colectivo que a Lei n.º 6/82/M, alterada pela Lei n.º 10/86/M, estabelecia dois regimes distintos para as concessões, designadamente os de exclusivo e de licença especial, sendo três o número máximo de concessões segundo este último regime. Além disso, de acordo com os artigos 3.º, n.º 1 e 7.º da Lei n.º 16/2001, alterada pela Lei n.º 7/2022, quer ao abrigo do antigo regime, quer ao abrigo do novo regime, o direito à exploração de jogos de fortuna ou azar em casino é atribuído pelo Governo de Macau, através de concessão, a sociedades constituídas em Macau, distinguindo-se apenas quanto ao regime das concessões. Diferentemente do que acontecia com a Lei n.º 6/82/M, a Lei n.º 16/2001 não prevê de forma expressa vários regimes distintos de concessão, nem faz referência ao regime de exclusivo ou de licença especial, estabelecendo apenas que a concessão da exploração de jogos de fortuna ou azar em casino é feita mediante contrato administrativo, nos termos da Lei n.º 16/2001, e que o número máximo de concessões é de seis. Tendo ponderado nas diferentes posições dos autores e nos diferentes entendimentos adoptados pelo Tribunal de Segunda Instância sobre a questão de “exclusivo”, entendeu o Tribunal Colectivo que o “exclusivo” da indústria dos jogos de fortuna ou azar em casino de Macau vai no sentido de exploração monopolista, ou seja, o termo “exclusivo” utilizado na letra da Lei n.º 6/82/M refere-se ao monopólio de exploração por uma única empresa, e não à exploração de jogos de fortuna ou azar em casino por várias sociedades mediante autorização especial do Governo. A entender-se o exclusivo como reportando-se ao facto de ser uma actividade reservada ao Governo e dependente de uma concessão, teria de concluir-se que não haveria diferença substancial para efeitos penais entre uma concessão em regime de exclusivo e uma concessão em regime de não exclusivo, o que poderia afectar o princípio da unidade do sistema jurídico que é exigido no âmbito da interpretação pelo artigo 8.º, n.º 1 do Código Civil. Tendo consultado a Nota Justificativa da Proposta de Lei n.º 16/2001 apresentada pelo Governo da RAEM, a afirmação do então Secretário para a Economia e Finanças ao fazer a apresentação da proposta de lei na Assembleia Legislativa e o parecer emitido pela Comissão eventual para a apreciação da proposta de lei relativa ao Regime jurídico da exploração de jogos de fortuna ou azar, após a ponderação sintética, entendeu o Tribunal Colectivo que através da Lei n.º 16/2001, o legislador introduziu alterações ao regime de exploração de jogos de fortuna ou azar em casino de Macau, sendo uma das reformas mais significativas acabar com o modelo tradicional de “exclusivo”, razão pela qual, no quadro desta Lei e de outra legislação relevante, a exploração de jogos de fortuna ou azar em casino deixou de ser concedida em regime de exclusivo e as concessionárias deixaram de explorar os jogos em regime de exclusivo, não constituindo, jamais, “sociedades que explorem actividades em regime de exclusivo” previstas no artigo 336.º, n.º 2, al. c) do Código Penal. Nesta base, entendeu o Tribunal Colectivo que no acórdão do processo n.º 248/2021 ora recorrido, é de manter a decisão proferida pelo Tribunal de Segunda Instância respeitante à qualificação jurídica dos factos ilícitos.
Face ao exposto, O Tribunal Colectivo do Tribunal de Última Instância decidiu conceder provimento ao recurso e, nos termos do artigo 427.º do Código de Processo Penal, fixou a seguinte jurisprudência, obrigatória para os tribunais da RAEM: «Ao abrigo da Lei n.º 16/2001 (e dos respectivos Despachos do Chefe do Executivo bem como dos contratos de concessão), as sociedades concessionárias de exploração de jogos de fortuna ou azar em casino da RAEM não são “sociedades que explorem actividades em regime de exclusivo”, para efeitos do artigo 336.º, n.º 2, al. c) do Código Penal e os seus trabalhadores não são equiparados ao funcionário.» Assim, manteve o acórdão recorrido e ordenou o cumprimento do disposto no artigo 426.º do Código de Processo Penal, de publicação do acórdão acima referido no Boletim Oficial da RAEM.
Cfr. Acórdão do Tribunal de Última Instância, proferido no processo n.º 69/2022.
Nos termos do art.º 426.º do Código do Processo Penal, o referido acórdão de uniformização de jurisprudência vai ser publicado no Boletim Oficial da RAEM, I Série, de 6 de Março de 2023.