Saltar da navegação

Um acto não constitui crime quando não seja manifestamente irregular e ilícito


Em 4 de Dezembro de 2015, B colocou, sem autorização expressa da autoridade judiciária, um texto na página do “Facebook” duma associação cujo conteúdo é “o Juiz do Juízo Criminal aplicou medida de coacção no caso de difamação relativo a A”; “(…) no caso em que A foi acusado da prática de dois crimes de difamação, o Juiz do Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base aplicou ao réu a medida de coacção de prestação do termo de identidade e residência, ordenando a remessa do respectivo boletim de registo criminal à Direcção dos Serviços de Identificação (…)”; e “a audiência de julgamento foi designada para (…) do próximo ano”, bem como divulgou na mesma página a fotografia da cópia do despacho do Juiz do Juízo Criminal do TJB. No mesmo dia, B divulgou igualmente na sua página do “Facebook” o texto e a fotografia em apreço. Em 20 de Abril de 2021, o Juízo Criminal do TJB absolveu B dum “crime de desobediência”, p. e p. pelo art.º 312.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, em conjugação com o art.º 78.º, n.º 2, al. a) do Código de Processo Penal.

Inconformado, A recorreu do decidido para o Tribunal de Segunda Instância, alegando que a decisão a quo padecia dos vícios de erro na aplicação dos princípios jurídicos, de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova.

O Tribunal Colectivo do TSI conheceu do caso.

Conforme o Tribunal Colectivo, no que concerne às questões de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova, nenhuma censura merece a decisão a quo. Quanto à questão de erro na aplicação da lei, concluiu o Tribunal a quo que o despacho em causa tinha sido publicado por B nos média sociais, acto esse sujeito às restrições previstas na alínea a) do n.º 2 do art.º 78.º do Código de Processo Penal, ou seja, tal despacho não podia ser publicado sem autorização prévia e adequada, pelo que o Tribunal Colectivo concorda com o Tribunal a quo que concluiu que na conduta do arguido se verificavam plenamente os elementos constitutivos objectivos do “crime de desobediência”. No momento da publicação do aludido despacho por B, no caso já se deduzira a acusação e seria realizado brevemente o procedimento de julgamento, a par disso, o teor do despacho não se relaciona com os depoimentos das testemunhas, as circunstâncias do caso, os dados pessoais, provas constantes dos autos, entre outras informações relevantes para o julgamento, mas sim com a espécie das medidas de coacção e a data designada para a audiência de julgamento que são assuntos divulgados diariamente pelos média. Logo, a eventual ilicitude da conduta de B não era facilmente percebida pelos cidadãos. Ademais, B publicou o despacho em apreço como os média, usando a forma de divulgação de notícias por estes adoptada. Por conseguinte, há razões para crer que B entendeu que a sua conduta era legalmente permitida como os actos de divulgação de notícias sobre o caso praticados pelos média. No entendimento do Tribunal a quo, B estava inconsciente da ilicitude da sua conduta. No caso não existe irregularidade e ilicitude manifestas, a par disso, a ilicitude do facto do caso não é geralmente conhecida pela sociedade, verificando-se o requisito previsto no n.º 1 do art.º 15.º do Código Penal – “proibições cujo conhecimento for razoavelmente indispensável para que se possa tomar consciência da ilicitude do facto” –, pelo que a conduta de B não reúne os elementos constitutivos subjectivos do crime, sendo incensurável. Porém, de acordo com o Tribunal Colectivo, a conduta de B deve ser severamente censurada por ser errada. À luz das regras da experiência comum, conclui-se que B pretendia divulgar que A tinha sido acusado da prática dos crimes de difamação contra B, a fim de expressar a sua insatisfação. Tal conduta causa ofensa aos dados pessoais e desrespeito à vida pessoal de outrem, contudo, o acto de ofensa aos dados pessoais de outrem praticado por B não constitui crime e não há lugar à convolação de um crime para outro com base nos factos assentes nos autos.

Nos termos e fundamentos acima expostos, acordaram no TSI em julgar não provido o recurso.

Cfr. Acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância no processo n.º 527/2021.