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O desigual juízo de factos díspares não configura uma divergência de direito – Rejeitado o recurso para uniformização de jurisprudência


Nos autos de recurso penal n.º 867/2023 do TSI, o arguido, na qualidade de croupier e aproveitando o cargo, através da troca de fichas e do pagamento de prémios do montante excedente, apropriou-se ilegitimamente de fichas vivas, a ele entregues por força do seu cargo, o TSI entendeu que as suas condutas não chegavam a compor um acto astucioso e, portanto, não preenchiam o elemento objectivo do crime de burla, deste modo, julgou que o arguido e os seus parceiros cometeram o crime de abuso de confiança. Do acórdão o MP interpôs perante o TUI recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, pugnando pela oposição a esse acórdão pois, no âmbito da mesma legislação, relativamente à mesma questão de direito, no acórdão de recurso penal n.º 43/2023 firmado pelo TUI, no seu entendimento, sendo entregues as fichas ao arguido em virtude do seu cargo de croupier, este, em conluio com os parceiros, pagou os prémios das apostas só depois de ter anunciado o resultado do jogo, como se tivessem sido regularmente apostadas, dessa forma, recorrendo à astúcia, deixou os parceiros obter as fichas por meio que parecia “legítimo” e trocá-las por numerário, parte do qual lhe foi pago como remuneração. O Colectivo do TUI sustentou que, o interesse ilícito que o arguido afinal obteve proveio do emprego de astúcia, em conluio, dele com os parceiros, mas não directamente das fichas que lhe foram entregues por conta do seu cargo, pelo que, as condutas satisfaziam os requisitos constitutivos do crime de burla.

O MP argumentou que, se manifestavam opostas, nos dois processos supracitados, a qualificação jurídica e a aplicação de direito sobre os factos de apropriação pelos agentes na qualidade de croupier, por qualquer meio (incluindo mas não exclusivamente “astúcia”), de fichas ou numerário que lhes foram entregues devido ao seu trabalho ou cargo.

O Colectivo do TUI conheceu do recurso.

Assinalou o Colectivo que, no tocante aos requisitos constitutivos do crime de burla, previsto pelo art.º 211.º do Código Penal, a astúcia representa um elemento relevante para julgar se o agente praticou tal crime, enquanto o crime de abuso de confiança não a tem como requisito constitutivo. No acórdão do TSI, o Tribunal não qualificou por astúcia o modo de execução de crime pelo arguido, o qual se traduzia em trocar fichas e pagar prémios do montante excedente, em consequência, não o condenou pela prática do crime de burla, mas sim pelo crime de abuso de confiança; porém, no acórdão do TUI, no seu entender, o arguido e os parceiros, em conluio, obtiveram ilegalmente as fichas só depois de os últimos fingirem apostar e ganharem, empregando astúcia em retirar o interesse ilícito, reuniram-se assim os requisitos constitutivos do crime de burla. Os dois acórdãos aludidos não apresentam divergência na interpretação e aplicação do art.º 211.º do Código Penal, coincidem na ideia de interessar o emprego de astúcia como requisito à constituição do crime de burla, o desencontro reside apenas em reconhecer o modo concreto de execução do crime como astúcia ou não, o reconhecimento discordante deriva dos factos díspares, resultando assim na adopção de soluções diferentes.

O Colectivo acrescentou que, no recurso para uniformização de jurisprudência, os mesmos preceitos da lei têm de ser interpretados e aplicados diversamente a factos idênticos em acórdãos proferidos cuja oposição é expressa. Mesmo que se apresentem analogias entre os factos dados como assentes nos dois acórdãos referidos, tal não implica que os dois Tribunais fizeram juízos discordantes sobre factos iguais, não há oposição sobre a mesma questão de direito nesses acórdãos.

Face ao exposto, não se verificando um dos requisitos essenciais e necessários para prosseguir o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, acordaram no Tribunal Colectivo em rejeitar o recurso.

Cfr. Acórdão do Tribunal de Última Instância no Processo n.º 42/2024.