No primeiro semestre de 2020, a vítima A travou conhecimento, por via de amigos, com B, instrutor do Muay Thai («boxe tailandês»), e C, atleta da modalidade. Em 1 de Outubro de 2021, A desafiou C para uma partida amigável de boxe, que viria a desenrolar-se pelas 18h00 do dia 4 do mesmo mês, arbitrada por B. A e C combinaram que o confronto no ringue se dividia em três rounds, cada um de três minutos. Os dois acordaram, de resto, sobre a renúncia a capacete durante a disputa e que se empregavam apenas protectores bucais, luvas e caneleiras para garantir a segurança. Os primeiros dois rounds deram-se entre ataques e defesas de ambas as partes. Pelas 18h15, porém, C atingiu a cabeça de A com sacos vigorosos, que o derrubaram no tapete. Ficou então sentado no chão. B, o árbitro, declarou logo a suspensão da partida. Seguidamente, A levantou-se de moto-próprio, chegou às cordas do ringue, bebeu água e tomou fôlego. Conversou com B e C. Pelas 18h19, A desceu do ringue voluntariamente para repousar fora do campo. Passado pouco tempo, A desmaiou e caiu no chão. Esbarrou contra o cronómetro quadrado de ferro com a parte direita da cabeça. C chamou a polícia de imediato para primeiros socorros. Transportaram A para o hospital. Faleceu pelas 16h18 do dia 13 daquele mês. Em seguida, o Ministério Público deduziu acusação contra C. A mulher e a filha de A pediram indemnização civil a C e a B. O Tribunal Judicial de Base conheceu do caso. Absolveu C do homicídio por ofensas graves à integridade física e indeferiu o pedido de indemnização civil formulado pela mulher e pela filha de A.
A mulher e a filha de A, inconformadas com a decisão do TJB, recorreu para o TSI.
O Tribunal de Segunda Instância conheceu do caso. O Tribunal Colectivo indicou que a absolvição decretada pelo tribunal a quo se fundamenta na impossibilidade de convencer-se da existência de dolo da parte de C. Impera ao Tribunal ad quem, portanto, averiguar o seu dolo. Para começar, há que debruçar-se sobre a validade do pacto de renúncia a capacete durante a partida acordado entre os dois pugilistas. De acordo com o Tribunal Colectivo, as regras de experiência comum ensinam-nos que a cabeça é uma das partes vitais do corpo humano. Numa disputa de boxe não “simbólica do género duelo até o primeiro sangue”, em que a cabeça possa sofrer ataques, o não uso de capacete põe o cérebro em risco de graves lesões irreversíveis. O acordo entre particulares que os dois fixaram é, portanto, inválido, pois não só ultrapassa a limitação prevista no art.º 71.º, n.º 4 do CC com vista a proteger a integridade física, como também viola os princípios de ordem pública. Logo, o acordo privado não pode constituir causa excludente da ilicitude referida no art.º 30.º, n.º 2, alínea d) do CP. Da matéria de facto resulta que a partida amigável de boxe visava fomentar a maestria técnica de ambas as partes, visto que nem A nem C tencionavam ferir o adversário, só que C, atleta do Muay Thai, devia saber que num confronto sem suficientes medidas de segurança, a perigosidade se intensifica sensivelmente, o que podia ocasionar lesões físicas. O risco assim acrescido já não se encontra mais dentro da medida permitida para uma partida cuja segurança fique suficientemente garantida. Por isso, C não deixou de praticar um crime negligente e deve assumir a responsabilidade criminal por homicídio por negligência, dada a morte causada. No que se concerne à fixação de indemnização, é de reduzir para metade os valores, uma vez que foi de vontade própria que A participou na partida de boxe e que combinou voluntariamente com C para que os dois competissem sem capacetes.
Nesta conformidade, em conferência, o Tribunal Colectivo do TSI acordaram em alterar a decisão de que se recorrera, condenando C a um ano e três meses de prisão, suspensa na execução por dois anos, pela prática de homicídio por negligência em autoria material e na forma consumada. Obriga-se, além disso, a pagar MOP378.260,00 à mulher de A e MOP371.400,00 à sua filha, a título de indemnização.
Cfr. o acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância no processo n.º 368/2024.